29.3.05

mais-ou-menos

tenho um deserto relutante entre os lábios cauterizando as dobras e vincos mal formados pelo que se foi. Tenho uns restos de uma canção tocada na ultima hora, mas já é tarde demais, a canção acabou, acabou até aquela sensação. E continuo não acreditando no nunca, acredito na oração de todos os dias, na qual renascemos em lágrimas que nos fazem crescer em risos. Hoje eu serei melhor que ontem e o amanhã pertence ao meu silêncio. Eu choro e procuro pelos restos do drama que deixei naquele véu infindável de acontecimentos. Porque tudo é sujo, porque tentamos limpar o que não vemos e o que não se vê. Tentamos não ver o que nos dói mais, esperando que um dia tudo anestesie. Pois sim, eu não fecho os olhos para o meu coração. E meu coração é tão vão, tão... tão são. Ser vítima de mim? Dos meus, das minhas invisíveis fases, do meu silêncio e da falta de compreensão. Sinto muito, não admito pessoas rasas. - Relato de Maria.

...
entenda, seja apenas interprete das coisas que te tocam.

e como ela eu amo com dor e dúvida, com um pormenor desagradável, eu amo muito, muito.

- alguém poderia me ensinar a plástica de se viver? - gritou Maria, meio amarelada.

- te ensino, é assim ó:

ponha pela garganta todo o teu meio ou o teu mais-ou-menos, seja como for, seja transparente, deixe escorrer, lambuze-se, faça do ato uma esperança, ainda que seja vã, apague as luzes que te acendem, apague a compreensão e sinta, resvale-se, esqueça pontuações, pelo menos uma vez na vida seja menos reticente, tente, seja, exista apenas para você, pinte-se, desnude-se, toque-se, sinta cada dobra de teu corpo, cada líquido, cada música, cada estação que se passou, e se ainda acredita, pense em Deus, é, acenda um incenso, ouça aquela musica que mais te emociona, seja sozinho agora e daqui a pouco, converse com teu ego, resplandeça-o, chore muito, porque assim aprenderá que tua dor não é tão forte assim, esqueça qualquer raciocínio lógico, porque neste exato minuto de egoísmo nada mais importa a não ser você, tenha em mãos a tua história e construa teu mural, teus recortes de jornal, as passagens preferidas dos livros preferidos, os teus personagens, recite um verso, ouça as cordas de um violão e cante, dance desvairadamente ouvindo estrelas e se teu nó não desatar tente novamente, porque de tudo o que dispomos só nos vale a tal eternidade.

17.3.05

vestígios

e tudo sucede...

é como os dias que seguem enferrujados e envoltos pela melodia que acompanha cada passo, um após o outro, cada passo. A mente não pára de cantar todas as vozes e ritmos. É uma certeza infiltrada pelo medo. É nicotina de um cigarro que valha entre os dedos. Um drum'n'bass na sala e soluços no quarto. Um choro: lágrimas. Uma porta se fechou. Um dia se cansa de querer algo, um dia se cansa mesmo. As repostas não chegam nunca, não chegam. Solidão em meio a um conjunto de vozes ocas, sacrificadas pelo excesso. Um cheiro, cheiros, chega de tudo isso. Eu quero um achego, um tom, uma sala escura e um violão. Quero cantar, meu amor. Eu quero. Tire os sapatos, sente aqui e me espere, um dia eu volto e te faço voar e então tua impressão será de vida. Estava te lendo e me perdi na décima linha da página vinte e nove. Tanta dissonância, tanto sentimento guardado em um copo de vidro que se quebrou. O silêncio acabou. Estou na décima primeira linha e agora existem guardados no armário as vozes e os medos - Por que não sai daí? Eu te bebo e deixo escorrer entre os lábios todo o teu gozo que cai no teu dorso, no teu colo, no meu sonho. Tenho todas as tatuagens espalhadas pelo corpo, me queimando, ardendo, me revelando mulher porque eu sou tua, vida. Existe uma distância entre o mistério e a revelação. Essa distância sou eu e me basto por isto. Não digo mais nada, meu segredo é egoísta, sinto muito. Me disseram que o ser humano perfeito é desinteressante. As imperfeições é que te chamam a atenção, porque você é ferido pela dor de ser igualmente imperfeito. São relatos de experiências, são mitos, são amores, que te apanham lá no fundo de você mesmo. É complicado, sabe. Talvez todas as respostas estejam guardadas num único sentido: existir. Preciso parar um pouco, seguir com calma, deixar isso aqui escoar naturalmente, para que eu possa voltar e ser lua, nova-mente. Por enquanto ficarei a espreitar os espetáculos de vida e se nada acontecer continuarei na melodia, acompanhando cada passo dos dias enferrujados e supostamente cheios de... eternidade.

15.3.05

lá no bar

a felicidade é tão simples. As palavras, numa conversa de bar diante de uma quarta-feira suada, anoitecida e regada a cervejas e afins, são movidas por risos e palavrões gostosos, descontração descomedida e maravilhada por fofocas daquela ali e daquele lá que escondeu os olhos de vergonha por ter comido a moça mais ordinária do grupo. Confissões descomunais fazendo a gente colocar as mãos na cabeça para não perder o juízo. Todos nós somos ordinários, sexuados, libidinosos, queremos sexo todos os dias, toda hora, mas vá lá: - "O meu nome é Sexo" - disse um dos presentes mal terminando a última sílaba até que recebesse um tapa da mulher que acabara de entrar no bar escondida para não ser notada - "Seu nome é Corno, seu safado fidumaégua" - retrucou ela indo embora com cinco pedras na mão. Só gargalhando da tragédia é que se vive, viu, é que foi engraçado mesmo. A gente vê de tudo depois da meia noite, gente mostrando a calcinha, gente comendo com os olhos, gente no banheiro há mais de meia hora fazendo sei lá o quê, gente que não bebe para não perder o rumo, gente que acende um cigarro no outro, gente de todas as classes papeando, discutindo sem noção e trocando olhares vagabundos, outros até vomitando. Povo muito louco que sai pra dar um tapinha e volta todo esfolado, ninguém entende. O mais engraçado é chegar em casa de madrugada, deitar de roupa e tudo, bêbada e cheirando a fumaça de bar, acordar depois de poucas horas para ir trabalhar, ainda bêbada e sem lembrar como foi que chegou até a cama, só lembrando da 'última' saideira e o brinde de saúde e felicidades já que era aniversário de um dos amigos queridos. A felicidade é coisa pra quem não mede uma palavra de amor, de amizade e mesmo de dor num abraço com lágrimas. A felicidade é feita por momentos assim, ímpares e especiais. Num bar, a gente vê de tudo, mesmo que seja num boteco, a gente aprende que uma boa conversa com bons amigos vale mais do que qualquer bem. Pois é, a felicidade é assim, passageira mesmo e simples como uma quarta-feira suada.

11.3.05

te reconheço

à Maria de Lourdes, em memória

Olhos da face que escondem uma vida. Vida de prantos e surras sacramentais. O medo do próximo jogo, o medo de perder-se em fogo. Olhos que de tão entristecidos já não brilham mais, já não vêem mais o iridescer do fim da tarde, a brisa do começo da noite e o calor do dia crescente. Olhos negros como ébano, profundos como uma cratera traiçoeira que te faz afundar em pensamentos desconexos e obscuros. Tenho medo desses olhos que na face fastidiosa se escondem e clamam por vida à mente presa em dissabores de maus hábitos ou hábitos impensados (como os meus). Olhos de uma alma menina, porém sôfrega e piedosa, de um corpo que morre e desaparece nas areias do tempo. Eu te reconheço nos olhos impressos e tristes que um dia se apagaram. Te reconheço num ser que ainda te ama e clama por ti, por um abraço mesmo que de tão triste já não tenha mais força, por um olhar materno, mesmo que esse olhar já não brilhe mais (aqui). Eu te reconheço no coração apertado e saudoso desse ser que ainda chora por ti e pede por tua presença invisível, por tuas mãos, por teu carinho indizível. Anjo caído de cabelos longos e negros, de pele branca e de alma cinza, te reconheço no preto e branco dos dias pálidos e das noites lustrosas de sombras. Eu te reconheço, corpúsculo da mente carente, na tua fotografia rasgada e envelhecida. Te reconheço nela, na pintura traçada pelas mãos Dele, que resiste ao encalço do tempo e que para mim hoje sorri. Eu te reconheço, mãe divina, que agora ocupa um lugar sagrado conquistado pelo corpo que sentiu a dor da vida e o suspiro da morte. Eu te reconheço, peço tua benção e agradeço por ter me deixado teu ovo frágil que por mim será aquecido e cuidado no calor do peito sedento de amor. Eu te reconheço e te guardo para um dia nos reencontrarmos e nos reconhecermos em carne e osso e alma limpa, cheia de vida e anseios. Eu te reconheço e me despeço com um adeus para não chorar no silêncio da saudade que chega de leve. Eu te reconheço e então finalmente eu digo - "Adeus e Até Breve".

4.3.05

piedade

uma súplica acima dos meus olhos e entre meus dedos.

eu peço piedade. Como uma fuga dos atos vãos e sôfregos, por uma vontade que não pára, que cega. Piedade para minhas linhas e meus borrões. Para a incredulidade que venho enaltecendo no decorrer de minhas vitórias perdidas. Piedade para o nojo de olhar meu reflexo e sorrir entre amarelos de dentes e lábios murchos, a me ver de costas para o abismo do mundo. Piedade para minha piegas compaixão. Para meus olhos renascidos entre medos e luxúrias, que vêem o escuro dos dias e traça os deuses de alentos. Piedade para a maternidade sonhada não consumada entre mulheres movidas pelo sal que escorre dos olhos e pelas vidas escritas em livros. Para o sexo embebido de ópera e dor e ausência de brilho. Para a própria falta de equilíbrio. Para o prazer súcubo, público, demoníaco, noturno e feroz. Piedade não só para mim. Para os surdos e cegos de vida. Para a miséria e para a sociedade. Para a menina dos olhos. Piedade entre caquéticos momentos de solidão movidos por vinhos e fumaças de cigarro entre ares sujos de salas escuras e vazias de sentido. Aos mortos a piedade dos vivos; aos vivos a vida dos mortos, ainda que haja a tal piedade. Para o sangue ocre que escorre dos lábios sedentos de infinito vazio. Para o nada. Para arranha-céus de robôs dramáticos. Para carnes viciadas pelo prazer da luz momentânea e toques esculpidos pela felicidade artificial. Para as mãos que os olhos guiam e que matam um belo sorriso pela falta de existência, de essência, pelo excesso de demência. Piedade para os pobres de orgasmo. Para os humildes de prazer. Para os que amarram suas bocas e cauterizam as cinzas vivas envoltas pela massa que faz a conexão com o corpo: o cérebro. Piedade para os que não sabem usá-lo e enterram-no num mundo dolorosamente real e racional. Piedade para a obrigatoriedade de ser igual e para a lição de decorar a vida deixando-a escoar pelos ralos do destino, pobre destino o nosso. Piedade para o sim incontestável e para o não miserável. Piedade para o poder e para a abnegação. Piedade para o deus enjaulado entre as trevas do homem e o paraíso sem nome. Para a oração sem dor, sem culpa, sem corte, sem suma. Para a censura. Para a ignorância dos sábios e para a fábula dos nulos. Para o amor platônico e para a paixão sem dono. Para a súplica insone. Para a própria piedade que não come, que não sofre, que não vive. E a você que lê e que sente e que vê e que não mente, que tu tenhas piedade, a piedade que eu não tive.

2.3.05

a-deus

foi quando eu tirei o vestido, tirei as rendas das moças, tirei a falsa ideologia de amar das pregas criadas pelas linhas e pelas máquinas. Despi o deus que me foi imposto, vesti-o de uma vida inteira, vesti-o de acontecimentos e ele me olhou; com aqueles olhos baixos e tementes, ele me olhou e pediu um abraço – "Querida, me abrace!" - e eu, vasta de mim, fechei o ventre e fui embora sem olhar para trás.