24.2.05

epifania*

amor que se dá sem pedir licença, sem perguntar, sem se misturar; amor livre, que apenas toca, que se mostra, acontece assim, desse jeito, que se dá sem perguntar, que se dá numa língua crível e indizível, que se dá sem atordoar, sem perguntar; amor assim, que se dá.
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caiu uma gota no chão. Era o começo da chuva da tarde e eu lembrei de nós duas. Tive vontade de dormir e escutar a lua, os pássaros se despedindo, as vidas acontecendo e os corpos se amando, suando, se assumindo. Ontem quando você chegou deu vontade de entrar dentro do seu sorriso, dentro dessa sua essência que me cala, que te exala, que nos preenche. Tenho vontade de você agora, neste exato momento e a vontade não passa desde que te vi lá, naquela estação de nossas horas, do nosso tempo, lembra?
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decorei um verso e ele é mudo e é lindo. Verso feito de olhos, bocas, tato e olfato. Verso nato, indescritível, por isso mudo, porém não surdo.
Te sorrio agora, te sorrirei sempre para não te entristecer. Me resguardo para não nos gastar no tempo, te decoro toda para jamais te esquecer. Me quebro em duas para que sejamos fortes, dois corpos, mil almas, esquecendo a morte, te fazendo mais mulher a cada dia, mandando o mal, pela própria sorte, desaparecer. Me intitulo 'sua' para que não seja pega de súbito nesse vai-e-vêm, nessa vida maluca, crua e nua, nesse ser-ou-não-ser e te admiro naturalmente para não te desvairar, para te merecer, para ter, para crer, para não temer. Me caso com você todos os dias para que a lembrança do beijo de sim seja eterna e me faço qualquer uma para não nos bastarmos sempre porque o nunca, nunca aconteceu... E eu digo que meu amor é forte, amor que se dá sem virgula, sem agudos, chorado, coitado, versado, amor livre, que acontece assim, desse jeito, amor que se dá sem perguntar, que simplesmente se dá como epifania, que se dá como você e para você, minha Tânia.


(*) manifestação divina.

21.2.05

meu palco

Lá eu dizia o que escorria por dentro, da forma mais sangrenta e esquisita possível, era livre. E lá eu não tinha um corpo, tinha apenas os dedos e uma mente inteligente. De uma forma sutil eu gritava e todos me ouviam, me aplaudiam, me odiavam e me enfeitavam com suas rosas vermelhas jogadas pelo palco, para o palco. Lá era personagem desprovida de pudor. Era libidinosa, erótica, segura e incolor. Alcançava o dinamismo da palavra em questão de segundos transformando-as em amor. De salto e uma cinta-liga preta, trepava em arames farpados me contorcendo de dor e mais dor e incorporando uma dama, uma diva moderna e uma menina caótica, num apartamento caótico deixei minha metáfora jogar minha taça de vinho seco - caótico - no chão. Tinha como companheiros inseparáveis o meu deus, o meu refúgio, minha droga de vida e meu vício de morrer. E sozinha me arrastava entre cenários, coxias, luzes e espelhos quebrados lembrando de uma saudosa canção que faleceu numa rua sem saída. Meu monólogo era vivo, intenso e complicado. Lá eu era fantasia divagando as intempéries da solidão. Não, por favor, não me chamem de Marlene, nem de Dolores, eu não tinha sequer uma identificação. Era o sábio e o plebeu de Confúcio, em uma forte alusão ao príncipe e seu povo. In memoriam de um padre lésbico interpretei um dom ruam qualquer e me apaixonei pela fala, pelo básico envolto por uma espada sem censura e me cortei. Hoje, num mundo esquecido, numa viagem sem vida, como num lugar qualquer eu acabei por me perder e foi assim, pois lá não haviam caminhos, placas, mapas. E agora estou aqui e o que eu faço? Desaprendi a viver dentro de mim.

17.2.05

fio de liberdade

A mudez mais uma vez pediu calma. Vibrou num delírio e explodiu arrancando as mãos da boca. Andava meio cansada de pensar por dentro, de guardar sua maturidade como um cubo de gelo entre os dedos. Desabrochou-se tímida e suntuosa e dançou tão vorazmente que nesse súbito desejou palmas e sacrifícios alheios. Os olhares obscurecidos pela impaciência tornaram-se atônitos e desculpados diante de tanta beleza. A mudez olhou de lado e sorriu breve. Contou naquele monólogo as vigas de seu edifício, os traços de sua temente escadaria e os degraus escorregadios. Às vezes engasgando, mas contando, cantando e encantando num tom melódico. E disse o seu amor de uma forma tão densa e escandalosa que sentiu vergonha de ser. Os olhos atentos procuraram nos seus vincos as sensações cobertas pelo antigo silêncio. Ela então arregalou-se e foi lambida rudemente por tais olhos salgados, estranhos, alegres e adolescentes. Sentia-se naquele momento uma simbiose crônica entre a mudez e os olhos sacrificados e naquele exato momento nada mais tinha importância.

REGALO:
É quando sentamos diante de nós mesmos e vomitamos os medos.
É quando damos um passo sem pensar no tropeço previsto.

14.2.05

aquela flor amarela

Quero ser essa loucura desmedida que nos pega pouco a pouco a cada minuto oco, tosco, afoito, sem dono. Deixe-me ser guia dos semblantes entre os que passam por nós e os que nos pegam na subtaneidade. Eu quero. Por favor, preciso do andarilho que me apunhala com um olhar de pena. Pobre! - ele diz. E eu sigo sem temor, pois sei que sou isso, o que todos pensam o que ele diz, eu sei, por isso como a carne e lambo meus dedos, até que já não sangre mais por dentro. Eu sei. Tenho anos guardados no bolso daquela calça jeans que já não me serve mais. Eu tenho. Tenho cores nas camisetas rasgadas e corroídas pelo odor da pele seca de fome, de suor, de sentido. Toque, bem aqui, por favor. Então eu me resvalo em riso frenético e danço, boneca, menina, doce, feliz para você. Me enrolo naquela casca que me fez sombra e me deixou dormir. Fecho os olhos e tento engolir os pingos da construção de vozes que ecoam, que orvalham em mim. Seca, boneca, menina, doce que salta para o próximo momento sem deixar vestígios. Eu sou, simples assim. Vai embora, pois que é chamada para o paraíso sem nome, para o homem, para a próxima morte - ouvi. Não fui. Fiquei a espreitar as danças, os sorrisos embebidos de sonho e álcool, de drogas e ervas, de vida e mocidade. Eu escolhi ser presa pela loucura, ser amarrada pela doçura e ser reconstruída pelo desejo, como aquela flor amarela que plantei no quintal de casa e que hoje se assume risonha, menina doce que brilha, para quem interessar possa, todo o seu sumo de cor. Que se põe na madrugada, que se abre aos primeiros raios, que se diz plena, cheia, vasta, flor madura de gozo e que entre todo o amarelo ainda guarda uma pétala sóbria que chora e que vive sua notória e vã intimidade. Simplesmente.