4.3.05

piedade

uma súplica acima dos meus olhos e entre meus dedos.

eu peço piedade. Como uma fuga dos atos vãos e sôfregos, por uma vontade que não pára, que cega. Piedade para minhas linhas e meus borrões. Para a incredulidade que venho enaltecendo no decorrer de minhas vitórias perdidas. Piedade para o nojo de olhar meu reflexo e sorrir entre amarelos de dentes e lábios murchos, a me ver de costas para o abismo do mundo. Piedade para minha piegas compaixão. Para meus olhos renascidos entre medos e luxúrias, que vêem o escuro dos dias e traça os deuses de alentos. Piedade para a maternidade sonhada não consumada entre mulheres movidas pelo sal que escorre dos olhos e pelas vidas escritas em livros. Para o sexo embebido de ópera e dor e ausência de brilho. Para a própria falta de equilíbrio. Para o prazer súcubo, público, demoníaco, noturno e feroz. Piedade não só para mim. Para os surdos e cegos de vida. Para a miséria e para a sociedade. Para a menina dos olhos. Piedade entre caquéticos momentos de solidão movidos por vinhos e fumaças de cigarro entre ares sujos de salas escuras e vazias de sentido. Aos mortos a piedade dos vivos; aos vivos a vida dos mortos, ainda que haja a tal piedade. Para o sangue ocre que escorre dos lábios sedentos de infinito vazio. Para o nada. Para arranha-céus de robôs dramáticos. Para carnes viciadas pelo prazer da luz momentânea e toques esculpidos pela felicidade artificial. Para as mãos que os olhos guiam e que matam um belo sorriso pela falta de existência, de essência, pelo excesso de demência. Piedade para os pobres de orgasmo. Para os humildes de prazer. Para os que amarram suas bocas e cauterizam as cinzas vivas envoltas pela massa que faz a conexão com o corpo: o cérebro. Piedade para os que não sabem usá-lo e enterram-no num mundo dolorosamente real e racional. Piedade para a obrigatoriedade de ser igual e para a lição de decorar a vida deixando-a escoar pelos ralos do destino, pobre destino o nosso. Piedade para o sim incontestável e para o não miserável. Piedade para o poder e para a abnegação. Piedade para o deus enjaulado entre as trevas do homem e o paraíso sem nome. Para a oração sem dor, sem culpa, sem corte, sem suma. Para a censura. Para a ignorância dos sábios e para a fábula dos nulos. Para o amor platônico e para a paixão sem dono. Para a súplica insone. Para a própria piedade que não come, que não sofre, que não vive. E a você que lê e que sente e que vê e que não mente, que tu tenhas piedade, a piedade que eu não tive.